Caso Marcia Barbosa de Souza vs. Brasil

É a 10ª condenação do Estado brasileiro pela Corte IDH. No dia 7 de setembro de 2021, o Brasil foi declarado internacionalmente responsável pelo feminicídio de Márcia Barbosa de Souza, praticado por um parlamentar que se beneficiou indevidamente de sua imunidade parlamentar, para não ser responsabilizado no plano interno.

Embora não seja a primeira vez que a Corte IDH julga Estados partes da CADH por feminicídio praticados por particulares, é uma jurisprudência que traz importantes aportes sobre as consequências para o Estado que deixa de cumprir com a devida diligência para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher, em razão da aplicação indevida de imunidade parlamentar.

Competência Temporal e em Razão da Matéria

O assassinato de Márcia Barbosa pelo então deputado estadual Aécio Pereira de Lima ocorreu em junho de 1998. Portanto, em data anterior ao reconhecimento da competência obrigatória da Corte IDH pelo Estado brasileiro (a partir de 10 de dezembro de 1998), que pode analisar os direitos cuja violação se protraíam no tempo, como é o caso dos direitos às garantias judiciais e a igualdade perante a lei.

Daí, por exemplo, ter ficado fora da análise o direito à vida de Márcia, mas ter sido considerado o direito à integridade pessoal dos pais dela.

Direitos Violados

8º: Garantias Judiciais c/c 1º (obrigação de respeito e garantia) E 2 (obrigações de adotar disposições de direito interno) da CADH c/c 7.b da Convenção Belém do Pará (obrigações específicas para prevenir, punir e erradicar violência contra a mulher)
25: Proteção Judicial
24: à igual proteção da lei e proibição de discriminação
5: Integridade Pessoal dos Familiares c/c 1º (obrigação de respeito e garantia) da CADH

O contexto de violência contra a mulher no Brasil era, na data dos fatos, mas continua sendo na atualidade, um problema estrutural e generalizado, a colocar nosso país em 7º lugar dentre os mais violentos contra as mulheres e a 5ª mais alta taxa do mundo de homicídios de mulheres por razões de gênero.

Dentre elas, as mulheres negras são 66 vezes mais mortas que as mulheres brancas. Há uma significativa diferença racial nas mortes violentas de mulheres no Brasil, a demonstrar a imbricação de categorias de opressão: gênero, raça e classe.

A Corte IDH fez algumas considerações gerais sobre a imunidade parlamentar, tendo em conta que foi a primeira vez que o analisou no quadro do direito de acesso à justiça e a obrigação reforçada de investigar com a devida diligência.

“A imunidade parlamentar é um instituto que foi idealizado como uma garantia de independência do órgão legislativo em seu conjunto e de seus membros, e não pode conceber-se como um privilégio pessoal de um parlamentar. Nessa medida, cumpriria o papel de garantia institucional da democracia. Não obstante isso, sob nenhuma circunstância, a imunidade parlamentar pode transformar-se em um mecanismo de impunidade, questão que, caso ocorresse, acabaria erodindo o Estado de Direito, seria contrária à igualdade perante a lei e tornaria ilusório o acesso à justiça das pessoas prejudicadas.” (Caso, pár. 100)

A Corte IDH reconheceu que a imunidade parlamentar só pode ser analisada diante de um caso concreto, a fim de evitar decisões arbitrárias ou que propiciem impunidade.

“Para isso, é necessário realizar um exercício cuidadoso de ponderação entre a garantia do exercício do mandato para o qual o parlamentar foi eleito democraticamente, por um lado, e o direito de acesso à justiça, por outro.” (Caso, pár. 107)

A Corte IDH analisou que a Câmara dos Deputados do Estado da Paraíba, por ato legislativo, no tocante à imunidade processual (relativo a pedido de licença para iniciar processo criminal contra o deputado) violou as garantias judiciais de Márcia Barbosa.

“Agora, à luz da finalidade da imunidade processual — a preservação da ordem parlamentar —, o exame do fumus persecutionis pressupõe um estudo da gravidade, da natureza e das circunstâncias dos fatos acusados, pois a resposta a um pedido de levantamento da imunidade parlamentar não pode derivar de uma atuação arbitrária da câmara legislativa, que ignore a natureza do conflito e as necessidades de proteção dos interesses e direitos em jogo.” (Caso, pár. 108)

“A Corte faz notar que, por se tratar de um caso relativo à morte violenta de uma mulher, o que evidentemente não está relacionado com o exercício das funções de um deputado, a possibilidade do uso político da ação penal deveria ter sido analisada com ainda mais atenção e cautela, tendo em consideração o dever de devida diligência estrita na investigação e sanção de fatos de violência contra a mulher exigido no regime convencional.” (Caso, pár. 120)

Sobre o dever de devida diligência em feminicídios

“A Corte também indicou que o dever de investigar tem um alcance adicional quando se trata de uma mulher que sofre uma morte, maltrato ou violação à sua liberdade pessoal em um contexto geral de violência contra as mulheres. Com frequência é difícil provar na prática que um homicídio ou ato de agressão violento contra uma mulher foi perpetrado por razões de gênero. Essa dificuldade às vezes deriva da ausência de uma investigação profunda e efetiva por parte das autoridades sobre o incidente violento e suas causas. Por essa razão as autoridades estatais têm a obrigação de investigar ex officio as possíveis conotações discriminatórias por razão de gênero em um ato de violência perpetrado contra uma mulher, especialmente quando existem indícios concretos de violência sexual, de algum tipo ou evidências de crueldade contra o corpo da mulher (por exemplo, mutilações), ou mesmo quando esse ato se enquadra dentro de um contexto de violência contra a mulher existente em um país ou determinada região. Outrossim, a investigação penal deve incluir uma perspectiva de gênero e ser realizada por funcionários capacitados em casos similares e em atenção a vítimas de discriminação e violência por razão de gênero.

Por outra parte, a jurisprudência da Corte indica que um Estado pode ser responsável por deixar de “ordenar, praticar ou avaliar provas que houvessem sido de muita importância para o devido esclarecimento dos homicídios” (Caso, pár. 130-131)

O caso está em fase de supervisão da sentença pela Corte IDH e impactou no Protocolo de Julgamentos com Perspectiva de Gênero, produzido pelo GT do CNJ instituído pela Portaria n. 27, de 2 de fevereiro de 2021, assim como na Recomendação de adoção do aludido protocolo no âmbito do Poder Judiciário brasileiro.